terça-feira, 27 de setembro de 2011

E da Tijuca veio a luz. É isso. Obrigada Rosanita bela!

História e memória
 
GUILHERME AUGUSTO ARAÚJO FERNANDESEscrito por Mem Fox
Ilustrado por Julie Vivas


Era uma vez um menino chamado Guilherme Augusto Araújo Fernandes e ele nem era tão velho assim.
Sua casa era ao lado de um asilo de velhos e ele conhecia todo mundo que vivia lá.
Ele gostava da Sra. Silvano que tocava piano.
Ele ouvia as histórias arrepiantes que lhe contava o Sr. Cervantes.
Ele brincava com o Sr. Valdemar que adorava remar.
Ajudava a Sra. Mandala que andava com uma bengala.
E admirava o Sr. Possante que tinha voz de gigante.
Mas a pessoa que ele mais gostava era a Sra. Antônia Maria Diniz Cordeiro, porque ela também tinha quatro nomes, como ele.
Ele a chamava de Dona Antônia e contava-lhe todos os seus segredos.
Um dia, Guilherme Augusto escutou sua mãe e seu pai conversando sobre Dona Antônia.
- Coitada da velhinha - disse sua mãe.
- Por que ela é coitada? - perguntou Guilherme Augusto.
- Porque ela perdeu a memória - respondeu seu pai.
- Também, não é para menos - disse sua mãe. - Afinal, ela já tem noventa e seis anos.
- O que é memória? - perguntou Guilherme Augusto.
Ele vivia fazendo perguntas.
- É algo de que você se lembre - respondeu o pai.
Mas Guilherme Augusto queria saber mais; então, ele procurou a Sra. Silvano que tocava piano.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo quente, meu filho, algo quente.
Ele procurou o Sr. Cervantes que lhe contava histórias arrepiantes.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo bem antigo, meu caro, algo bem antigo.
Ele procurou o Sr. Valdemar que adorava remar.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo que o faz chorar, meu menino, algo que o faz chorar.
Ele procurou a Sra. Mandala que andava com uma bengala.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo que o faz rir, meu querido, algo que o faz rir.
Ele procurou o Sr. Possante que tinha voz de gigante.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo que vale ouro, meu jovem, algo que vale ouro.
Então Guilherme Augusto voltou para casa, para procurar memórias para Dona Antônia, já que ela havia perdido as suas.
Ele procurou uma antiga caixa de sapatos cheia de conchas, guardadas há muito tempo, e colocou-as com cuidado numa cesta.
Ele achou a marionete, que sempre fizera todo mundo rir, e colocou-a na cesta também.
Ele lembrou-se, com tristeza, da medalha que seu avô lhe tinha dado e colocou-a delicadamente ao lado das conchas.
Depois achou sua bola de futebol, que para ele valia ouro; por fim, entrou no galinheiro e pegou um ovo fresquinho, ainda quente, debaixo da galinha.
Aí, Guilherme Augusto foi visitar Dona Antônia e deu a ela, uma por uma, cada coisa de sua cesta.
"Que criança adorável que me traz essas coisas maravilhosas", pensou Dona Antônia.
E então ela começou a se lembrar.
Ela segurou o ovo ainda quente e contou a Guilherme Augusto sobre um ovinho azul, todo pintado, que havia encontrado uma vez, dentro de um ninho, no jardim da casa de sua tia.
Ela encostou uma das conchas em seu ouvido e lembrou da vez que tinha ido à praia de bonde, há muito tempo, e como sentira calor com suas botas de amarrar.
Ela pegou a medalha e lembrou, com tristeza, de seu irmão mais velho, que havia ido para guerra e que nunca voltou.
Ela sorriu para a marionete e lembrou da vez em que mostrara uma para sua irmãzinha, que rira às gargalhadas, com a boca cheia de mingau.
Ela jogou a bola de futebol para Guilherme Augusto e lembrou do dia em que se conheceram e de todos os segredos que haviam compartilhado.
E os dois sorriram e sorriram, pois toda a memória perdida de Dona Antônia tinha sido encontrada, por um menino que nem era tão velho assim.

Fonte:
FOX, Mem. Guilherme Augusto Araújo Fernandes. São Paulo: Brinque-Book, 1984.

domingo, 11 de setembro de 2011

Se ir...

A gente se dilui
aos poucos
quase como uma saudade
como um copo de água
no meio da sede
das areias
das cidades submersas
a gente se desfaz
se vai
e fica
se liquidifica
amanhece
absorve tempo
falta 
assopra
corre
volta
vai de novo
se assopra
devaneia 
A gente é silêncio
palavra 
incompreendida 
alucinada
letras inteiras partidas
separadas
subtraídas
trem de metrôs
líquidas
saliva
pedaços de mar
de ventos
somos esse mundo inteiro
ou apenas
tudo o que a gente lembra...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

... Será que viver é estar na memória?

Memória (Cecília Meireles)


Minha família anda longe,
com trajos de circunstância:
uns converteram-se em flores,
outros em pedra, água, líquen;
alguns, de tanta distância,
nem têm vestígios que indiquem
uma certa orientação.

Minha família anda longe,
- na Terra, na Lua, em Marte -
uns dançando pelos ares,
outros perdidos no chão.

Tão longe, a minha família!
Tão dividida em pedaços!
Um pedaço em cada parte...
Pelas esquinas do tempo,
brincam meus irmãos antigos
uns anjos, outros palhaços...

Seus vultos de labareda
rompem-se como retratos
feitos em papel de seda.

Vejo lábios, vejo braços,
- por um momento persigo-os;
de repente, os mais exatos
perdem sua exatidão.

Se falo, nada responde.
Depois, tudo vira vento,
e nem o meu pensamento
pode compreender por onde
passaram nem onde estão.

Minha família anda longe.
Mas eu sei reconhece-la:
um cílio dentro do oceano,
um pulso sobre uma estrela,
uma ruga num caminho
caída como pulseira,

um joelho em cima da espuma,
um movimento sozinho
aparecido na poeira...
Mas tudo vai sem nenhuma
noção de destino humano,
de nenhuma recordação.

Minha família anda longe.
Reflete-se em minha vida,
mas não acontece nada;
por mais que eu esteja lembrada,
ela se faz de esquecida;
não há comunicação!

Uns são nuvens, outros, lesma...
Vejo as asas, sinto os passos
de meus anjos e palhaços
numa ambígua trajetória
de que sou o espelho e a história..

Murmuro para mim mesma:
"É tudo imaginação!"
Mas sei que tudo é memória


Vanina, resolvi corrigir.. ou deixemos Ápide mesmo?

É bonito ver como as palavras são poderosas e nos permitem leituras. Basta uma troca de letra e tudo pode mudar, as perspectivas.. as imagens e sentidos.
Por aqui acabo de acordar e são 16hs, foi o sono de uma noite em claro.

E sobre as lápides; elas contam muito porque são poderosas, pequenos registros sintéticos da vida que alí jaz. O nome, as filiações e as datas de vida e de morte. Lembro que sempre visitava o túmulo de minha prima Patrícia, ela era paraplégica e eu a conheci em vida, depois ía visitá-la no cemitério e era, através de sua pequena foto na lápide que ela se fazia viva em mim. Tinha um orgulho danado disso e era um momento prazeroso.

Será que viver é estar na memória?

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Ápice... Ápide...

Digerindo...
E enquanto ocorre a digestão reparo em um "ato fallho".
No ápice do blog, no lugar de ápice leio ápide...
me sugere lápide...
e nas lápides em geral vão frases relacionadas às memórias dos que jazem.
Tem um lado triste, tem um lado singelo.
ápice, ápide, lápide..
e tudo digerindo!

QUE HISTÓRIA VOCÊ TEM PARA CONTAR?

Abrindo a mesa.

08 de setembro.
Dia de encontro com Paula. Michel não veio, ela vem..
Na mesa o café posto, as bolachas e os pensamentos.
Desejo de saber de velho.

Que história você tem para contar? Você terá alguma história pra contar?

E na escuta o registro do que já foi e todavia é..

Ah, e só pra registrar; as aquarelas tem falado coisas.
A poesia também.


Carta aos Mortos
Affonso Romano de Sant´Anna
Amigos, nada mudou
em essência.
Os
salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há récordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.

Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.

Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos
parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração , insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.